Category Archives: Geração

Personagens e Vómitos

Sabem o que têm em comum o Conde Drácula, o detective Sherlock Holmes, o monstro de Frankenstein, Hamlet, as irritantes irmãs Bennet, D’Artagnan e os Três Mosqueteiros e Alice no País das Maravilhos? Todas estas personagens são icónicos e têm, pelo menos, mais de vinte adaptações para o cinema.

Quer seja respeitando o conteúdo original ou dando azo a reciclagens mais criativas, onde se alteram tons de pele, modos, vícios ou finais felizes, a tendência de Hollywood reutilizar vezes sem conta estes personagens acentua uma enorme falta de criatividade.

Dei comigo agora a saber que Nosferatu vai ser alvo de uma nova adaptação, como se não existissem já filmes de vampiros aos magotes.

Enfim, por isso é que de tempos em tempos temos determinados movimentos renascentistas em que a criatividade volta à mó de cima. Gostaria apenas de estar a passar por ela…


Cloud Cuckoo Land

Cloud Cuckoo Land

de Anthony Doerr

Uma vez que traduzido à letra (A Terra dos Cucos Nefelibatas ou A Terra dos Cucos das Nuvens) este livro cairia imediatamente na lista de livros a evitar devido a parecer uma parvoíce pouco desafiadora, a equipa da Editorial Presença preferiu ter uma abordagem mais conservadora e chamou simplesmente a este obra-prima: Uma Cidade nas Nuvens. Um título impossível de esquecer, certo? Enfim…

Em termos de enredo, o Autor complica e complica ao ponto de me espantar com a sua destreza técnica e planeamento de enredo no final do livro. Temos cinco personagens principais divididas por três linhas temporais, sendo que ainda temos de contar com os flashbacks de três personagens. Ufa…

No início, há aparentemente pouco a ligá-las, mas a verdade é que o enredo vai-se adensando e o que enlaça as três linhas temporais principais (bem como os flashbacks) vai-se tornando muito mais nítido ao ponto de nós percebermos que a verdadeira mensagem deste livro não é apenas que cada livro e bibliotecários são especiais e merecem ser preservados independentemente da doutrina ou do tom com que foram escritos. É realmente grandiosa a forma como o Autor entrega o final.

Por outro lado, em termos de personagens, aprecio particularmente o facto deste livro se reportar bastante à relação entre a adolescência e a terceira-idade. Não há propriamente um protagonista de trinta ou quarenta anos cuja força física se equivalha a uma experiência acumulada e que sirva de ponte entre todas as personagens. O Autor foca-se muito na juventude, na sua ingenuidade, na sua determinação e nos seus diversos problemas ao longo da história para nos fazer perceber a importância modeladora desses acontecimentos iniciais durante o resto da nossa vida.

O ritmo da narrativa é constante e os ganchos narrativos são bastante bem executados.

A prosa do Autor é bastante fluída e não teme socorrer-se de palavras menos comuns para o que quer que seja. Há igualmente uma maravilhosa tendência para comparações e metáforas bastante precisas e imaginativas. Apetecia-me destacar uma ou outra, mas estaria a ser injusto para com o autor ao revelar os seus tesouros metafóricos.

Em termos de conteúdo para lá dos enredos, e sem ser exaustivo, o Autor aborda inúmeros problemas actuais da sociedade como a solidão, a pobreza, os problemas da parentalidade singular, catástrofes climáticas, extinção massiva da biosfera, as consequências do medo, extremismos, conservadorismos, guerras, síndromes e patologias incompreendidas, manipulação de jovens solitários e vulneráveis através da propagação de idiossincrasias perigosas por meio de redes sociais e, por fim, os perigos da programação tecnológica.

É maravilhoso apreciar ao longo de todo o livro este condensar orgânico, tal como é revelador de uma extrema sensibilidade perceber todos os paralelismos que se fazem entre a Conquista de Constantinopla, a nossa década dos novos 20´s e o Futuro da Humanidade. Serão os nossos problemas sempre os mesmos ainda que com capas e vestimentas novas?

O que posso dizer mais? Anthony Doerr é um verdadeiro mestre tecelão. Fiquei abismado e imagino apenas um bocadinho do sofrimento que este homem passou para conseguir enlaçar todas estas histórias umas nas outras de modo a passar a mensagem e os paralelismos que queria passar. Magnífico, o melhor que li no último ano…


AUCTORITAS

Auctoritas. Os antigos romanos tinham esta palavra que há muito me ecoa no ouvido. Gosto particularmente dela e de tudo aquilo que ela representa. Até da sua sonoridade eu gosto: auctoritas

O referido conceito, facilmente intuitivo e que deu origem ao étimo português “autoridade”, aplicava-se normalmente ao prestígio moral de um cidadão na sociedade romana e, consequentemente, à sua capacidade para influenciar e reunir apoios em torno das suas posições políticas. O mesmo termo, para além de utilizado na ciência política, tem também um ângulo mitológico que se prende com o misterioso dom, quiçá divino, para o “poder do comando” de algumas figuras lendárias do Império Romano. Uma vez que defendo a laicidade do estado não gosto muito deste ângulo divino, mas mais adiante vão perceber porque o menciono agora.

Atravessando nós um momento em que vale tudo na política portuguesa (e na política ocidental também, sejamos verdadeiros…), é importante resgatar esta ideia de auctoritas na hora de nomear pessoas para posições importantes, designadamente assessores, gestores públicos, secretários de estado, ministros e até líderes da oposição.

Igualmente importante é não confundir este auctoritas com competência técnica. Há gente muito boa no que faz que não tem o hábito de decidir nem o dom de liderar. Logo, esta pessoa muito competente pode (e deve) ser escolhida pelo seu prestígio técnico para exercer um cargo público, mas não pode estar à frente de decisões como alguém que tenha um perfil de líder, um perfil carismático, aglutinador e capaz de comandar hostes.

Um líder com verdadeiro auctoritas, por mais que oiça e se aconselhe, decide e decreta caminhos. Ao técnico competente é-lhe delegada a missão de prosseguir conforme a liderança definiu. É tão fácil no papel, não é? O problema é por vezes perceber que um líder pode e deve ser igualmente uma pessoa competente tecnicamente, tal como o técnico pode (e deve) ser tão proativo (e valorizado) como um líder dado que é este que executa e dá corpo às diretrizes da própria auctoritas.

Posto isto, numa altura em que os ventos dos autoritarismos começam a ganhar força por todo o mundo onde antes não passavam de escumalha ignorante, é preciso que os políticos que defendem a harmonia e o equilíbrio das democracias percebam que só existem três formas de combater a polarização da sociedade:

  1. Escolher pessoas com um auctoritas inquestionável e inabalável para desempenhar cargos públicos de liderança;
  2. Tomar cada decisão com o intuito de preservar sempre o auctoritas do líder e o nosso próprio auctoritas;
  3. Investigar, expor as faltas e falsidades de auctoritas dos agentes mais radicais da política e despojá-los de opinião pública e tempo de antena.

Quando tratamos de malta que se encontra indecisa entre o método científico e o negacionismo é preciso encontrar alguém que ponha as pessoas a ouvir verdadeiramente o que é dito sobre determinado assunto; pelo que não pode ser uma pessoa qualquer encontrada num comício de uma qualquer juventude partidária que repita o que ouviu dizer nem um fulano que define a sua moral estritamente pela positividade da lei.

Quando tratamos dos problemas entre equilibrados e desequilibrados, não podemos deixar de preservar a nossa imagem enquanto escutamos as preocupações dos raciocínios mais ultrapassados — como racismos, xenofobias e demais misantropias — e apontamos a puxar para a superfície a sua falha essencial: medos e ódios não resultam e nunca resultaram em nada a não ser um estado de absoluta inacção e conformação com os actos mais vis e cruéis.

Quando se trata de distinguir o que é verdadeira acção política de uma narrativa meramente populista, devemos evidenciar todos os esforços para desmascarar os discursos mais bonitos e tentadores da praça pública.

Tornando aqui à mitologia, nunca se esqueçam que uma das alcunhas preferidas do Diabo é o simplesmente o Tentador e uma das suas ferramentas preferidas é a própria tentação. Logo, gente com prestígio moral e capaz de comandar massas deve apontar ao demónio e mostrar a todos porque até ele gostaria de ceder às tentações, mas não pode. Porque ceder à tentação é abrir a porta à entrada de uma sociedade ainda mais caótica.

Alguns dir-me-ão que já não há gente com auctoritas. Pois eu digo que há. É só uma questão de os procurar e definir critérios precisos para os jogar para a frente ao mesmo tempo que devemos fazer tudo para retirar às falanges radicais cada pingo de prestígio dos doidos que as fazem avançar.

by JFoliveras

Guerra e Paz

Olhando para a Ucrânia e para tudo o que a sua guerra tem de abjecto, encontrei no YouTube dois vídeos em que soldados ucranianos usam telemóveis de soldados russos mortos em combate para ligar às respectivas esposas destes últimos e tratam de lhes revelar que os mesmos soldados russos morreram em combate. Se tiverem curiosidade por observar o referido fenómeno (os links ficam infra), podemos observar que há notoriamente dois factores que diferenciam os dois vídeos:

Num vídeo temos o respeito que um soldado ucraniano nutre pelo luto de uma viúva do seu inimigo e, em resposta, observamos o desmoronar em lágrimas da viúva que cede imediatamente ao luto. Percebe-se que há uma barricada que separa soldado ucraniano e viúva russa, mas há igualmente uma dor dos dois lados que os torna simplesmente humanos e que talvez os motive a procurar juntos algo chamado paz e pazes.

No segundo vídeo temos o desrespeito que o soldado ucraniano nutre pela dor e pelo luto da esposa de um inimigo caído e observamos imediatamente uma resposta odiosa e cheia de cólera da mesma viúva. O que dizer disto? Alguns chamar-lhe-ão uma infantilidade do soldado ucraniano, outros dirão que o soldado transformado em besta carniceira pela guerra cometeu um acto de malvadez sobre alguém que nenhuma culpa tem de amar um soldado. Eu, por exemplo, prefiro olhar para esta interacção e sublinhar que se trata de um acto que só tem uma consequência: mais ódio, mais justificação para a beligerância.

Enfim, é fácil de perceber qual o modo mais eficaz de obter a paz. Resta às chefias passar aos seus soldados o que é certo e o que é errado.

Antes de morrer em 1992, o escritor Isaac Asimov legou-nos muitos clássicos de ficção científica, dos quais se destacam inegavelmente a saga Fundação. Este homem de sangue russo e criado em Brooklyn foi alguém que olhou para o passado, presente e, especialmente, para o futuro antes de se preocupar a ensinar o seguinte:

“A espécie humana apenas se pode permitir uma guerra: a guerra contra a sua própria extinção.”


Vox populi? Justa vox populi…

Por vezes ouvimos alguns populistas dizer: Vox populi, vox dei, que traduzido do latim para uma língua viva como a nossa significa voz do povo, voz de deus. É uma frase sonante, admito. Uma frase que até pode ter tido alguma relevância em eras seculares. Contudo, continuará a ter alguma razão de ser nos dias de hoje?

De um ponto de vista conotativo, podemos interpretá-la como um adágio que visa sensibilizar os patrícios políticos para os problemas da plebe votante. E deste ponto de vista até serve (algumas vezes, poucas, talvez pouquíssimas…) para pressionar a malta da política a mexer-se um bocadinho de modo a não perder votos nas eleições seguintes.

Contudo, se formos para um sentido mais literal, no sentido em que o povo normalmente interpreta, imaginem lá o Alto Pai da Criação ignorar o facto de a Organização Mundial de Saúde ter retirado a homossexualidade da lista de problemas de saúde há cerca de 32 anos — em 17 de Maio de 1990 mais precisamente — e repetir as mais recentes declarações de Khalid Salman (actual embaixador do Mundial 2022 no Catar e alguém que actualmente representa uma enorme falange do povo islamita). Imaginem lá a carantonha do Alto Deus a dizer-nos com o apontador levantado: “A homossexualidade é uma doença mental!”.

Enfim…

Por outro lado, deixemos os exemplos mais sonantes e estapafúrdios da actualidade. O que seria do povo de Deus se o próprio Deus começasse a repetir, por exemplo, as mais discretas e transversais vozes seculares do povo português: “Um olho no burro, outro no cigano”, “A mula e a mulher com pau se quer”, “A judeu e a porco não metas no teu horto” e “De Espanha nem bom vento nem bom casamento”. Que Deus teríamos? Um Deus racista, misógino e xenófobo?

Pensemos.

Talvez exista mesmo uma expressão melhor e mais actual com tendências universalistas: Voz do povo? Só mesmo voz do povo…


Desespero Silente

É sufocante e sombria
A água desta poça vazia
Onde me afogo lentamente
Faltam coisas neste peito —
Só não me falta o ar, ainda…

Das profundezas do martírio
Me aproximo neste afundanço
Sem mergulho precedente,
Sem empurrão dum falhanço
Ou sem uma falha decadente.

Acordei nestas trevas somente,
Destituído de forças e coragens —
Outrora fiéis, imutáveis e estáveis —,
Acordei neste abismo simplesmente,
Sem aliados e sem solução evidente.


A PROPÓSITO DE CONAN, O BÁRBARO

Recordado esta semana por Jason Momoa de um filme com pouco fulgor a nível de bilheteira — um filme com um enredo muito pobre, mas que eu até gostei — dediquei-me a encontrar no Youtube uma série de desenhos animados chamada Conan, The Adventurer. Para um pequeno rapazinho que sempre adorou fantasia heroica, pouco existia muito melhor para ver na televisão do que deleitar-se com este cartoon com o carismático Conan a liderar um duo ou trio do seu notável grupo de companheiros. Adorava igualmente Needle, a fénix de estimação que se refugiava no escudo do Bárbaro. Ao contrário de muitos, cujo primeiro contacto com Conan se prendeu com os filmes de Arnold Schwarzenegger, o meu primeiro contacto com o Barbarian foi esta série de bonecos aventureiros e foi este o Cimério que se sedimentou na minha mente: um guerreiro com companheiros de todas as raças e géneros.

Acicatada a curiosidade ainda mais, fui em busca de um pequeno livrinho de Robert E. Howard (que me custos cinco euros) e descobri um conto de Conan, o Bárbaro chamado The Vale of Lost Women (O Vale das Mulheres Perdidas) apenas publicado em 1967 na The Magazine of Horror.

Escolhi este conto por estar longe dos contos da década de trinta e ser um dos contos menos conhecidos, felizmente!!!, acerca de Conan, o Bárbaro. Posto isto, qual não foi o meu espanto quando encontrei o patrão da fantasia heroica no seguinte monólogo:

“You said I was a barbarian,” he said harshly, “and that is true, Crom be thanked. If you had had men of the outlands guarding you instead of soft-gutted civilized weaklings, you would not be the slave of a black pig this night. I am Conan, a Cimmerian, and I live by the sword’s edge. But I am not such a dog as to leave a white woman in the clutches of a black man; and though your kind call me a robber, I never forced a woman against her consent. Customs differ in various countries, but if a man is strong enough, he can enforce a few of his native customs anywhere. And no man ever called me a weakling!”

If you were old and ugly as the devil’s pet vulture, I’d take you away from Bajujh, simply because of the color of your hide.”

“But you are young and beautiful, and I have looked at black sluts until I am sick at the guts. I’ll play this game your way, simply because some of your instincts correspond with some of mine. Get back to your hut. Bajujh’s too drunk to come to you tonight, and I’ll see that he’s occupied tomorrow. And tomorrow night it will be Conan’s bed you’ll warm, not Bajujh’s”

(Sublinhados meus)

Portanto, e se repararem bem nos excertos sublinhados, encontrei quatro frases absolutamente racistas e uma última frase de repulsivo sexismo.

Chocados? Não fiquem. Revoltados com o Autor? Não vale muito a pena, ele já está morto e os seus próprios amigos condenavam-lhe tal perspectiva. Apostados em cancelar Conan, The Barbarian? Nem pensem! É um personagem icónico e merece algum respeito, especialmente por não fugir narrativamente ao que verdadeiramente é: um bárbaro.

Por muito que custe a alguns, os bárbaros são bárbaros por muitas razões que não apenas a de provirem de um longínquo lugar onde não existem estradas de pedras nem se fala latim. Os bárbaros são gente com a qual ninguém se quer dar porque são perigosos. Estes bárbaros, sendo fiéis ao nome, têm tendências anarcas e pouco preocupadas com leis. São escravos da fome, da sede e da luxúria. Deliram com a visão do caos. Adoram deuses que nunca ninguém ouviu falar. E, acima de tudo, possuem mentes retrógradas e enclausuradas em visões segregantes que lhes foram ensinadas, normalmente, pelos seus progenitores.

Robert E. Howard saberia disto? Quero acreditar que sim, pelo menos nalgum ponto da sua vida.

Após uma breve pesquisa na internet descobri que a visão racista deste contador de histórias era real. Tal como real é que tais sentimentos racistas se foram desvanecendo ao longo da sua carreira literária. Tal leva-me a questionar o que levou o Autor a mudar a sua perspectiva. Terão sido os seus familiares? Amigos? Algum evento público? Uma pequena conversa de café com um pastor afrodescendente? Ou terá chegado o dia em que este Autor releu as aventuras do Cimério e este o ajudou a perceber a imbecilidade que era pensar dizer coisas tão estapafúrdias como “você não seria escrava de um porco preto esta noite” ou ”(…) eu olhei para putas pretas até ficar doente das tripas”.

Gosto de pensar que o regenerador do Sword N’ Sorcery foi salvo pelo seu Conan. Afinal de contas, para mim, o Cimério será sempre aquele herói dos cartoons que travava amizade e liderava um grupo de companheiros de todas as raças e géneros.


CADERNOS DA ÁGUA

Cadernos da Água

de João Reis

by Quetzal

Não conhecendo este Autor de qualquer leitura anterior, e infelizmente com muito pouco feedback acerca do trabalho do mesmo, a boa sinopse no verso do livro com a promessa de uma distopia vivida por uma família portuguesa contada sob diferentes pontos de vista seduziu-me, especialmente porque, tal como todas as boas distopias (1984, Admirável Mundo Novo…), alerta-nos no agora para um futuro em que se agravam os actuais problemas bastantes específicos do nosso país como o são, entre outros, a escassez de água, a alteração das condições climáticas e o choque cultural (tanto com os nossos vizinhos do Norte de África como com outros actuais aliados).

Em termos de enredo, o Autor optou por dividir a acção em duas linhas narrativas distintas consoante o espaço narrativo. Uma dessas linhas segue um esqueleto bastante em voga neste momento como as epístolas de um narrador confinado que, sempre passivamente, aguarda num campo de refugiados por um desfecho melhor. A segunda linha narrativa, ainda que nunca separada verdadeiramente da primeira linha, entronca num relato que alterna entre uma história de sobrevivência e uma história de alcançar a outra margem do rio para encontrar a salvação.

Em termos de personagens, Sara, a narradora protagonista, que é mãe e refugiada num campo de concentração refugiados, é sem dúvida a personagem mais explorada e com todo o tipo de camadas psicológicas possíveis (e que ainda são muitas tendo em conta o reduzido número de 244 páginas desta estória). É igualmente pelos olhos dela que o leitor é confrontado com todo o tipo de situações que certamente todos os refugiados do mundo vivem diariamente nos seus campos de refugiados. As outras personagens têm pequenos arcos interessantes, mas verdadeiramente nunca chegamos a criar um vínculo empático tão forte com estas como com a protagonista.

Em termos de espaço narrativo, o Autor criou um amplo segundo plano que vai revelando a conta-gotas, mas não passa em nenhum momento ao detalhe de pormenorizar causas, efeitos, reacções e amplitude de consequências de cada um dos eventos traumáticos desta obra (até porque, acredito, em nenhum momento tem a pretensão de detalhar muito cada um destes eventos).

Em termos de mensagem: “Salve-se, poupe água” passa muitas vezes por um slogan que nos recorda o “Proteja-se, fique em casa” de 2020, mas a verdade é que um slogan, por mais simples que seja, traduz sempre uma mensagem tão forte quanto precisa. E a verdade é que nós, portugueses, com o Sahara aqui tão perto, não andamos a olhar tão atentamente para a questão da água como deveríamos olhar; e muito menos ainda para a necessidade de a poupar perante o quadro de alterações climáticas que TODO o mundo presencia inertemente.

Por fim, quanto à prosa do Autor, a mesma é fluída (ainda que por vezes desnecessariamente explicativa). Por outro lado, o Autor serve-se de todas as opções tipográficas que um processador de texto permite (diversificação de fontes, redução do tamanhos dos caracteres, rasuras profissionais…) para diversificar igualmente pontos de vista das estórias contidas nestes Cadernos da Água. Não é absolutamente original, mas o Autor usa esta ferramenta com a precisão e mestria necessárias para enquadrar na obra vários detalhes sem cair numa forçada artificialidade.

Não sei se o Autor pretende voltar a mergulhar neste universo narrativo, mas para mim o final fica bastante em aberto e com uma revoltante reviravolta (que achei deliciosa). Logo, talvez tenhamos direito ao segundo capítulo desta história. Fico a aguardar com um olho mais atento ao trabalho deste Autor.


Milagrário Pessoal

by Quetzal

Milagrário Pessoal

de José Eduardo Agualusa

Este consagrado autor José Eduardo Agualusa socorre-se de uma escrita leve (ainda que cuidada e precisa) para criar imagens fortes, tão capazes de nos arrancar sorrisos como de nos fazer pensar. Tal escrita, tão portuguesa ao mesmo que notoriamente se agarra a raízes angolanas e não descura os demais verbos e adjectivos dos trópicos, é mesmo o melhor de Milagrário Pessoal.

Mas há mais, o enredo simples, queimando lentamente sem cair num ritmo entediante e com um final algo surpreendente, resume-se pela procura do responsável por uma enxurrada de neologismos (palavras novas) que subitamente se entranha por todos os meios de difusão da língua portuguesa.

Quanto a personagens, o destaque vai para o narrador octagenário, um linguista com raízes angolanas, e para Iara, uma portuguesa caçadora de neologismos portugueses. Ainda que não se chegue verdadeiramente ao âmago emocional desta última personagem, nota-se que a mesma foi criada com profundidade e, já quanto ao professor narrador, vamo-nos aprofundando no seu passado, no seu presente e no seu futuro até mesmo ao final da obra. É um protagonista muito bem construído, até pelo seu agradável humor.

E é com este humor de sonhador acordado que o Autor nos apresenta uma carta de amor à língua portuguesa e a todos os seus “criadores” e catalisadores da sua evolução. Não se esquece de ninguém. O pequeno moço de um recôndito recanto do mundo que se socorre dos populares crioulos ou dos populares sotaques do interior é louvado. Os refinados poetas africanos, brasileiros e portugueses são louvados. Os romancistas lusófonos são louvados. E até outras línguas, como o árabe ou o tupi, são louvadas. A língua portuguesa resulta de um cadinho forrado de todas as partes do mundo.

Ao mesmo tempo, o Autor avisa-nos também para os perigos do conservadorismo e dá o exemplo acabado do que a própria linguagem popular faz pela popularidade e evolução da língua portuguesa. Gostei particularmente das referências a Camilo Castelo Branco, o primeiro Autor a viver exclusivamente da escrita e que não se escusava a procurar todos os tipos de palavras incomuns ao redor do mundo — algo que todos os escritores dignos desse nome sabem que é o seu maior dever e prazer.

Posto isto, e depois do primeiro livro do ano lido, uma última nota. Este livro tem um ritmo baloiçante (longe do frenético e com horror ao tédio), mas ainda assim recomendo esta obra apenas a quem gosta de se demorar e afeiçoar a cada frase de um livro. É para ler e apreciar um capítulo por noite (por mais que queiramos avançar). Vão ver que não há maior deleite.


Predador Apex

Não me digam que eu não luto,
Busco tempo em cada minuto —
Um tempo estacado, em bruto —
Para não deixar de ser este puto.

Desejo, em sonhos profundos,
Umas horas sem os segundos
Vagabundos que, mui imundos,
Me varrem de todos os mundos.

Mas, convenhamos, é inevitável,
Não há cá verdade mais estável:
O tempo é um predador detestável
E preda tudo o que seja admirável.

Alzheimer No 01 Drawing by Mahdi Mahdian