Monthly Archives: Julho 2022

CADERNOS DA ÁGUA

Cadernos da Água

de João Reis

by Quetzal

Não conhecendo este Autor de qualquer leitura anterior, e infelizmente com muito pouco feedback acerca do trabalho do mesmo, a boa sinopse no verso do livro com a promessa de uma distopia vivida por uma família portuguesa contada sob diferentes pontos de vista seduziu-me, especialmente porque, tal como todas as boas distopias (1984, Admirável Mundo Novo…), alerta-nos no agora para um futuro em que se agravam os actuais problemas bastantes específicos do nosso país como o são, entre outros, a escassez de água, a alteração das condições climáticas e o choque cultural (tanto com os nossos vizinhos do Norte de África como com outros actuais aliados).

Em termos de enredo, o Autor optou por dividir a acção em duas linhas narrativas distintas consoante o espaço narrativo. Uma dessas linhas segue um esqueleto bastante em voga neste momento como as epístolas de um narrador confinado que, sempre passivamente, aguarda num campo de refugiados por um desfecho melhor. A segunda linha narrativa, ainda que nunca separada verdadeiramente da primeira linha, entronca num relato que alterna entre uma história de sobrevivência e uma história de alcançar a outra margem do rio para encontrar a salvação.

Em termos de personagens, Sara, a narradora protagonista, que é mãe e refugiada num campo de concentração refugiados, é sem dúvida a personagem mais explorada e com todo o tipo de camadas psicológicas possíveis (e que ainda são muitas tendo em conta o reduzido número de 244 páginas desta estória). É igualmente pelos olhos dela que o leitor é confrontado com todo o tipo de situações que certamente todos os refugiados do mundo vivem diariamente nos seus campos de refugiados. As outras personagens têm pequenos arcos interessantes, mas verdadeiramente nunca chegamos a criar um vínculo empático tão forte com estas como com a protagonista.

Em termos de espaço narrativo, o Autor criou um amplo segundo plano que vai revelando a conta-gotas, mas não passa em nenhum momento ao detalhe de pormenorizar causas, efeitos, reacções e amplitude de consequências de cada um dos eventos traumáticos desta obra (até porque, acredito, em nenhum momento tem a pretensão de detalhar muito cada um destes eventos).

Em termos de mensagem: “Salve-se, poupe água” passa muitas vezes por um slogan que nos recorda o “Proteja-se, fique em casa” de 2020, mas a verdade é que um slogan, por mais simples que seja, traduz sempre uma mensagem tão forte quanto precisa. E a verdade é que nós, portugueses, com o Sahara aqui tão perto, não andamos a olhar tão atentamente para a questão da água como deveríamos olhar; e muito menos ainda para a necessidade de a poupar perante o quadro de alterações climáticas que TODO o mundo presencia inertemente.

Por fim, quanto à prosa do Autor, a mesma é fluída (ainda que por vezes desnecessariamente explicativa). Por outro lado, o Autor serve-se de todas as opções tipográficas que um processador de texto permite (diversificação de fontes, redução do tamanhos dos caracteres, rasuras profissionais…) para diversificar igualmente pontos de vista das estórias contidas nestes Cadernos da Água. Não é absolutamente original, mas o Autor usa esta ferramenta com a precisão e mestria necessárias para enquadrar na obra vários detalhes sem cair numa forçada artificialidade.

Não sei se o Autor pretende voltar a mergulhar neste universo narrativo, mas para mim o final fica bastante em aberto e com uma revoltante reviravolta (que achei deliciosa). Logo, talvez tenhamos direito ao segundo capítulo desta história. Fico a aguardar com um olho mais atento ao trabalho deste Autor.